Duas mulheres, uma africana e uma brasileira, comentam suas perspectivas sobre a conexão entre a inovação e a ancestralidade.
Por Carla Furtado
Juliana Luna e Zinzi de Brouwer poderiam ser amigas se já tivessem se encontrado em uma de suas viagens. Por mais que uma seja carioca e a outra moçambicana, ambas vivem pelo mundo em busca de inspirações. Uma é estrategista de comunicação, a outra de moda. Mas assim, só pela necessidade de definir um tanto de coisa num termo. Aos 30 anos, Luna e Zinzi investem seu tempo em pesquisas que têm o objetivo comum de encontrar a ponte entre a ancestralidade africana e os tempos atuais.
Luna nasceu no Rio de Janeiro e hoje vive entre os Estados Unidos e o Brasil. Uma de suas buscas é por histórias de mulheres que, como ela, não se conformaram com as limitações impostas pela sociedade. Depois de descobrir antepassados nigerianos, do grupo étnico iorubá, passou a ensinar a arte dos turbantes, algo que vai além da simples amarração de tecidos na cabeça. Também escreve na Revista AzMina e recentemente lançou o YEMISI, projeto que oferece vivências em Yoga, identidade, e auto-cuidado no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro.
Zinzi cresceu entre Moçambique e os Países Baixos, desenvolvendo uma formação multicultural com fortes raízes africanas. Além de estilista, professora e estrategista de marca, hoje é co-fundadora da empresa Stories of Near, um estúdio de antecipação de tendências com foco na moda, dedicado ao continente africano como mercado emergente. O objetivo é reunir narrativas e construir pontes transnacionais, para que a moda seja compreendida como um fenômeno social que vai além das estações.
As duas “pesquisadoras-viajantes” participaram da última edição do Festival Path, em maio deste ano. Luna fez parte da mesa que abordava “Como o empoderamento da mulher negra impacta toda a sociedade brasileira”, e Zinzi deu a palestra “Me disseram que o futuro está na África”. Em tempos de foco no empoderamento negro, o Átomo faz a essas duas mulheres tão próximas e ao mesmo tempo tão distantes as mesmas perguntas, para compreender como um novo olhar sobre este continente ancestral pode apontar um melhor futuro.
Você acredita que o mundo está num processo de olhar para as raízes africanas e enfim valorizá-las de maneira mais profunda?
Luna: Eu acredito que nossas raízes africanas são uma forma de dizer ao mundo o quão resilientes somos como povo. A valorização disso tem que acontecer primeiro por nós, povo da diáspora. Nossa história foi completamente distorcida, apagada e contada através de uma ótica perversa e cruel que começou quando decidiram escravizar e colonizar nossa gente a qualquer custo. O povo africano contribuiu com diversos avanços tecnológicos na história da humanidade, mas isso não é parte da narrativa mundial em pleno 2017. Hoje em dia, vemos sim muitas pessoas se levantando para questionar a visão ocidental hegemônica que se instaurou ao longo dos séculos, e certamente essas pessoas tem orgulho de serem negras, na diáspora ou não. Mas, para mudar de fato essa história, precisamos da ajuda de todos os que acreditam na mudança e sabem que a verdade é diferente do que tem sido narrado. Precisamos de um movimento mundial de união para que as raízes do povo africano sejam reconhecidas e valorizadas, e finalmente haja reparação de fato.
Zinzi: Eu acho que é um exagero que o mundo está olhando a África para apreciação. Infelizmente, essa é uma noção que está apenas começando a crescer, e espero que através da conexão digital possamos chegar lá mais rápido. Não é fácil convencer as pessoas do imenso potencial e da realidade do continente, nem é fácil ver como começar um diálogo ou colaboração com a cena criativa na África. É por isso que minha intenção é inspirar os outros, nunca para convencer. E a inspiração vem do lado visual, da música, da fotografia, dos produtos, das pessoas. Trata-se de mostrar as gemas escondidas que muitas vezes não conseguimos ver porque estamos tão acostumados a ver uma única história sobre a África. Se você ouvir a palestra “O Perigo de Uma Única História”, de Chimaman Adichie, ela fala precisamente sobre o perigo de conhecer apenas um lado da África. É por isso que é minha missão ao longo da vida é ser a contadora de histórias deste continente inspirador e explosivo.
“As pessoas africanas não têm escolha senão chegar a soluções inovadoras para os problemas que enfrentam no continente” (Zinzi de Brouwer)
Em seus respectivos trabalhos com moda, há uma preocupação em relação aos modelos de fast fashion? Você acredita que ainda há tempo das pessoas consumirem moda de maneira mais consciente?
Luna: Ainda há tempo. Mas a velocidade com que consumimos está acelerando a velocidade com que o planeta reage a nossa falta de consciência. Como se fosse uma equação diretamente proporcional. O consumo consciente deve ser aplicado em todas as esferas do nosso cotidiano. Alimentos, roupas, relacionamento com o outro, consigo, com o meio ambiente, com o dinheiro… Tudo precisa sofrer mudanças para que a gente de fato transforme nossa realidade em algo melhor e mais justo para todos os seres vivos que habitam este planeta. Acho que o que tem que mudar são nossos valores. Parar de dar poder à elite, repensar nossa forma de nos relacionar com a política, com a produção de alimentos, com as pessoas, com o sistema. Criar novos caminhos será nossa responsabilidade.
📷"O futuro é feminino e africano" — Foto de @nsimbavalene, reprodução de @StoriesOfNear
📷"O futuro é feminino e africano" — Foto de @nsimbavalene, reprodução de @StoriesOfNear
Zinzi: A natureza do meu trabalho inevitavelmente trata de abordar a sustentabilidade na sua raiz. Venho de uma base como estilista e aprendi a usar a moda como veículo de mudança, a implementar estratégias mais conscientes e sustentáveis que contenham o imenso lixo, poluição e falta de responsabilidade social que essa indústria tem enfrentado. Nesse sentido, a sustentabilidade não é apenas usada como um discurso inspirador, pois penso que passamos há muito tempo desse estágio. Deve ser parte inerente da dinâmica de cada designer.
Eu acho que podemos aprender com o que está acontecendo no continente africano para produzir soluções que são necessárias no sistema de moda global. Métodos sustentáveis, o significado do luxo, o valor da mão humana, são todos tópicos com os quaisa África vem lidando há décadas. As pessoas africanas não têm escolha senão chegar a soluções inovadoras para os problemas que enfrentam no continente: falta de água, falta de materiais, infra-estrutura deficiente, etc. Assim, em muitos cantos, você verá artesãos, designers e criativos em geral já lidando há tempos com muitas questões que a indústria da moda enfrenta hoje.
As pessoas costumam enxergar o continente africano de maneira homogênea, assim como a população negra brasileira. A moda pode ajudar a mostrar que há diversidade afro?
Luna: Eu sempre me coloco como exemplo da diversidade do povo negro brasileiro. Eu, Juliana Luna, mulher nascida na Baixada Fluminense, que cresceu na Bolívia, Chile e fala quatro idiomas fluentes. Se você for observar a trajetória de cada pessoa negra no nosso país, claro que vai identificar denominadores comuns, por conta de uma homogeneidade de comportamentos que nos foram impostos socialmente. Mas a nossa narrativa é extremamente diversa. Por isso eu bato na tecla da identidade. A moda é uma das ferramentas para contar essa história pessoal. O estilo é algo que nasce de um impulso criativo, um desejo de expressão interior que comunica e conversa com o meio exterior. Dessa forma, as pessoas conseguem mostrar os detalhes das suas vivências e trocar com o meio genuinamente. Eu acredito que essa seja uma ferramenta muito divertida para nos fazer presentes. E o povo negro é lindo nessa diversidade.
Zinzi: A moda nos ajuda a expressar melhor nossas identidades, e eu acho que o continente africano oferece esse dinamismo dentro da fusão do contemporâneo e da tradição, herança e futuro, jovens e velhos. Designers como Orange Culture, Lukhanyo Mdingi e Loza Maleombho estão contribuindo para novas formas de expressar o passado, o presente e o futuro. Marcas como a Edun estão preparando o caminho para novas formas de manifestações da moda, pessoas como a Amy Sall estão mostrando que existem novas regras a serem jogadas. Estamos ganhando ícones em que podemos nos inspirar, que podem nos mostrar que a juventude na África é uma forma híbrida de todo tipo de influências que irão abrir caminho para um futuro totalmente novo e excitante.
"Acho que o que tem que mudar são nossos valores. Parar de dar poder à elite, repensar nossa forma de nos relacionar com a política, com a produção de alimentos, com as pessoas, com o sistema. Criar novos caminhos será nossa responsabilidade" (Juliana Luna)
Luna, como foi sua experiência na África? Zinzi, como foi sua breve experiência no Brasil? Encontraram muitas inspirações?
Luna: Eu sou muito feliz na África. Só visitei três países dos 54 no continente e a diversidade é algo infinito lá. Sou muito feliz na Nigéria. Quero sempre aprender mais e mais. Quando vou pra lá, estudo na escola de arte ancestral e me vejo como uma ponte entre a beleza e sabedoria da tecnologia iorubá e o Brasil. Inspiração é pouco para o que eu vejo quando trabalho lá. Me sinto profundamente transformada cada vez que aprendo algo sobre meu povo. Como se meu banco de dados interno se expandisse a cada visita. Espero que seja assim, até o fim dos meus dias aqui na Terra.
Zinzi: Eu acho que o Brasil oferece uma singularidade e um coquetel de influências similares às daqui, precisamente porque tem muitas influências culturais e históricas. A vastidão do país, os atributos musicais e gastronômicos, e a paixão na maneira de viver e comunicar é altamente contagiante. As técnicas artesanais são semelhantes ao que vemos em muitos cantos da África, e o impulso das pessoas em geral para viver intensamente e ser um quanto está com o outro é algo que me lembra a minha casa em Moçambique. Eu acho que existe um enorme link com o Brasil e os países lusófonos da África, e estou ansiosa por explorar isso ainda mais no futuro!
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