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A volta à comida pelo afeto

Por Marília Passos


Em tempos de alimentação funcional e onipresença do mundo fitness, falar sobre comida para além dos nutrientes e benefícios para o corpo é revolucionário. Em fevereiro de 2017, um tweet da culinarista Rita Lobo instigou a discussão sobre alimentação saudável e ortorexia — distúrbio alimentar caracterizado pela obsessão por comer saudável. Longe das trincheiras das discussões sobre o que significa comer bem, entusiastas do prato têm alimentado outra conversa sobre a comida: a do afeto.


“A comida tem uma capacidade que eu acho incrível: ela te conecta com pessoas, com emoções e com momentos da sua vida de uma maneira muito única, de uma maneira muito potente, de uma maneira muito profunda,” afirma Ana Holanda, jornalista editora da revista Vida Simples e autora de Minha Mãe Fazia.


Publicado pela Bicicleta Amarela, selo da editora Rocco, o livro reúne crônicas sobre a infância e as comidas do dia a dia acompanhadas de receitas tiradas de cadernos de receita da escritora e de sua mãe.


Em 68 receitas, Ana compartilha suas memórias e emoções e nos presenteia com uma lista de ingredientes e o passo a passo para a realização de um prato ligado — diretamente ou não — à história contada. “São textos que conectam a comida com relações, com a vida, com as emoções”, explica Ana. Algumas receitas e histórias são inéditas e outras já foram publicadas na página do Facebook que deu origem ao livro homônimo.


“A página surgiu há quase quatro anos de uma vontade minha de dar vazão a duas coisas que eu sempre gostei: cozinhar e escrever. Surgiu de uma maneira muito despretensiosa até encontrar um caminho que me era confortável, que era escrever de uma maneira mais próxima, mais afetiva, falando sobre comida”, conta a jornalista.


Apesar das potentes memórias compartilhadas nas crônicas, a autora só começou a relacionar com a comida de forma mais ativa após o nascimento dos filhos gêmeos Clara e Lucas em 2009. “Eu queria que eles construíssem a mesma relação que eu tinha com a comida; que percebessem ali a nutrição não apenas do corpo, mas também da alma”, escreve Ana na introdução de Minha Mãe Fazia.


Já a relação com a palavra é mais longa, — Ana se formou em Jornalismo em 1995, passou por publicações como Marie Claire, Bons Fluidos e comanda a redação da Vida Simples desde 2011 — e compartilhada também em oficinas de escrita afetiva. “As pessoas esperam escrever de uma maneira que faça mais sentido. Elas esperam se encontrar na escrita, encontrar o melhor dela, encontrar uma escrita que de fato converse com o outro”, explica

Ana conversa com o leitor em seus textos temperados de emoções e sentimentos, engrossando o caldo de escritores, chefs e comensais que prezam por uma relação mais simples e emocional com a comida.


Memória culinária coletiva

No blog Lembraria, as jornalistas Viviane Aguiar e Viviane Zandonadi estão criando um verdadeiro acervo da memória culinária de São Paulo. Além de compartilhar suas histórias pessoais com a comida, a dupla resgata histórias de quem comeu e come na cidade.


Com menos açúcar, ciente das peças pregadas pelas lembranças e, mesmo assim, inevitavelmente tentada pelo adocicado do passado, pretendo reunir aqui recordações sobre comida que contam a história não minha, mas do lugar em que vivo, São Paulo. São lembranças que foram parar em pesquisas folclóricas, em livros de receitas, em antiquíssimas notícias de jornal, em exposições de museu, em cenas de novela… Viraram patrimônio, inconsciente ou construído, conhecido ou ignorado. E são também, ao mesmo tempo, lembranças que por algum motivo, em algum momento foram parar sob a confusa cobertura de modismos e discursos inventados que reveste o bololô de nossa memória coletiva.

O resgate feito pelas jornalistas não se prende ao fato, números, datas. Ele acontece através de relatos pessoais, reforçando a ideia sugerida por Ana Holanda de que a comida nos conecta com nós mesmos, com a pessoas que amamos e com o mundo.


Na alta gastronomia, chefs como o italiano Massimo Bottura, cujo restaurante Osteria Francescana foi eleito o melhor do mundo em 2016, encontram também uma forma de servir afeto e lembrança em cada prato.

No primeiro episódio da série Chef’s Table, produzida pela Netflix, Massimo lembra um momento de sua infância em que se escondia embaixo da mesa onde sua avó estava abrindo a massa para falar sobre o Tortellini de seu menu.


De baixo da mesa, eu olhava o mundo por uma perspectiva diferente. A fartinha caía da mesa, eu ficava ajoelhado, e naquela hora, eu roubava um tortellini lá de baixo da mesa. Assim, quando me perguntam qual é o prato da minha vida, é o tortellino, mas o tortellino cru, porque esse é o momento em que roubava o tortellino cru recém-feito pela mão na minha avó. Por isso comida é tão importante para mim, porque em muitas criações que faço, pode-se ver que estou tentando levá-lo àquele momento, de volta a sua infância.


Em tempos de tanta informação e desinformação sobre comer bem, Ana, Vivis, Massimo e companhia convidam as pessoas a perceberem as conexões que a comida cria entre elas e emoções.


Minha mãe fazia Ana Holanda Editora Rocco

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