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Como garantir o acesso à alimentação saudável, um direito que não chega em todas as mesas?

Da ocupação de espaços ociosos ao resgate da agricultura familiar, saiba quem democratiza a fartura à mesa e aproxima as pessoas do alimento


Por Brunella Nunes

Em um discurso na Conferência Internacional em Nutrição, em Roma, o Papa Francisco disse que “o direito a uma alimentação saudável é questão de dignidade e não de caridade”, citando ainda que a crise econômica, a corrupção, a segurança nacional e manipulação são desafios para o acesso à comida. Para analisar como a alimentação saudável consegue se desenvolver sem o respaldo governamental e em meio a vários desafios, fomos buscar respostas com alguns profissionais que a praticam. Às margens, segundo os padrões sociais, as comunidades mais afastadas têm mais esse direito excluído de seu alcance quando se trata de ações do poder público. Mas será que é possível, afinal, comer pelas bordas?


Nas regiões menos abastadas, a principal violência cometida é a do sistema, que retira dessa parcela da população uma infinidade de oportunidades, a começar pela educação e pelo acesso à informação. Precárias, as instituições de ensino sequer tem uma merenda digna para dar aos alunos, que em casos mais graves, recorrem às escolas só para conseguir fazer uma refeição. E onde há fome, não há desenvolvimento humano. Há privação de direitos. Tudo isso acaba fazendo parte do ciclo do deserto alimentar, termo aplicado às áreas com escassez de comida devido a dificuldade de acesso, diminuindo mais ainda as chances de consumo. Ou seja, não é bem uma questão de escolha.


O Festival Path, grande evento de inovação e criatividade que terá sua sexta edição nos dias 19 e 20 de maio, no bairro de Pinheiros, traz diversas palestras que vão discutir essa questão latente. Confira a programação completa em www.festivalpath.com.br

Atuando como permacultor, educador e articulador cultural Jaison Pongiluppi tem suas raízes literalmente fincadas na A.P.A Bororé-Colônia, extremo sul de São Paulo. Com a família na região há mais de 70 anos, ele observava o avô plantar e colher seu próprio alimento, algo comum na roça. Com o tempo passando e os costumes mudando, notou que a produção local, da Cooperapas — Cooperativa Agroecológica dos Produtores Rurais e de Água Limpa, ia parar não nas casas de quem vive por lá, mas em gôndolas superfaturadas dos bairros mais nobres da cidade, como Pinheiros. Para reverter esse cenário, implantou no centro eco-cultural Casa Ecoativa o contato entre agricultores do sítio Paiquerê e moradores, que podem comprar de forma acessível uma cesta semanal de orgânicos. Assim formou-se um grupo de consumo responsável nos arredores do Grajaú.


“É um espaço de interesse, porém pouco conhecido. Não é todo mundo que conhece essa relação com a represa, a Mata Atlântica, os patrimônios culturais, as comunidades indígenas e afrobrasileiras que existem aqui. É um ponto importante discutir para onde vai a alimentação orgânica. Batemos no ponto dessas práticas serem elitizadas. Há muito tempo essas tecnologias são das bordas e quando algum grupo começa a cooptar esse tema e elitizar ou ‘gourmetizar’, isso é uma estratégia que afasta outras pessoas que poderiam estar junto nesse discussão. E mais uma vez esbarramos na desigualdade”, apontou ao Átomo. Ele participa da mesa “Deserto Alimentar: o desafio do acesso à comida”, que acontece no Festival Path.


Mas o ativista acredita que a questão vai além da demografia e até mesmo do poder aquisitivo. “A gente sabe que é muito mais difícil o acesso ao alimento em alguns bairros periféricos, mas não necessariamente a pessoa que mora numa região central vai comer melhor. A cidade está comendo mal de maneira geral pelo modelo de vida desgastante do sistema. A vida está em baixa qualidade. Para mim, deserto alimentar é a cidade de São Paulo inteira, porque uma cidade que não apoia e não investe em agricultura, em agroecologia, é propensa a tal condição, seja na periferia ou no centro.

A Segurança Alimentar e o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) deveriam ser garantidos segundo o artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas), de 1948. No Brasil, a Constituição reforça a ideia a partir da Emenda Constitucional nº 64, aprovada em 2010, comprometendo o poder público a arcar com as demandas, seja por meio de programas, ações e políticas que dão acesso à qualidade e quantidade suficiente de alimentos saudáveis.


“Na ótica da natureza, o Brasil é extremamente rico na produção de alimentos. Ao mesmo tempo que produz, desperdiça isso tudo. A estratégia não tem muito fundamento. A gente vai entendendo que a fome é um boicote do sistema. Até porque se você passa fome, significa que foi boicotado, violado, da própria informação. Além de interromper o alimento, não nos permitir acessá-lo, acho que em primeiro lugar vem a informação. Porque quando você chega ao ponto de passar fome, é porque você sofreu outros boicotes antes. Não é um processo simples”, explicou.


Tal constatação é reafirmada quando se observa que os dados não batem. A produção de alimentos no mundo todo é suficiente para 12 bilhões de pessoas. Temos 7,6 bilhões de habitantes compartilhando o planeta Terra e um desperdício de 35% do que é produzido. Ou seja, a logística não tem colaborado com a erradicação da fome. Quando a comida vira especulação e poder, fica difícil distribuí-la corretamente e de maneira justa.

A bióloga Luisa Haddad é a idealizadora do Pé de Feijão, negócio social que faz uso de hortas urbanas para aproximar pessoas do alimento, entre outras funções. Para ela, o acesso à alimentação saudável é um propósito de vida, do qual o brasileiro precisa se apropriar. Chegam alimentos ultraprocessados, comorefrigerante e salsicha onde não chegam frutas, legumes e verduras, onde não chega nem a água potável”, contestou, complementando que “por muitas vezes as pessoas não comem bem por falta de informação, tem família que sabe onde conseguir o arroz, o feijão, a mandioca, mas acredita que o macarrão instantâneo irá alimentar a família bem”. No Festival Path, Luisa participa da mesa "Alimentando as mudanças no mundo".


Como solução, a especialista aponta que uma das ferramentas para ampliar o acesso é a alimentação escolar e equipamentos públicos de alimentação. “Mas ambos precisam estar muito atentos ao movimento do campo a mesa e de realmente fortalecer a compra de alimentos direto dos produtores familiares, para que não só se garanta que a comida chegará em quem passa fome, mas que a qualidade de comida que está chegando seja adequada.”


Expandir conceitos como economia solidária, consumo consciente, agroecologia, permacultura, educação alimentar e ocupação de espaços ociosos com a criação de hortas urbanas se faz necessário para que o ciclo de alimentação adequada se concretize, de fato, reduzindo assim os vergonhosos desertos alimentares. “A gente vai apostando nessas tecnologias novas ou talvez seja o momento de voltar um pouco para trás e considerar a sabedoria ancestral como uma tecnologia. A cultura tradicional afrobrasileira e indígena… Coisas que servem para democratizar o acesso à alimentação, à informação, aos recursos tecnológicos, à oportunidades. Vamos apostando nas novas velhas práticas”, argumentou Jaison.


O debate envolve ainda uma série de questionamentos relacionados a privilégios, desigualdade e violação, que segundo Jaison são combatidos com ações baseadas em três princípios: cuidar das pessoas, zelar pela natureza e partilhar o excedente, porque uma coisa vai levando à outra. “Temos que seguir na luta, otimistas, por maiores que sejam as porradas e as rasteiras. Nos apoiamos em modelos de borda, em algo descentralizado, horizontal e colaborativo. A gente vai caminhando pelas margens e tentando criar metodologias para se apropriar desse conhecimento rumo aos processos inovadores, que confrontam a hegemonia capitalista.


Uma das grandes apostas dos entuasistas pela alimentação saudável e adequada nas mesas dos brasileiros é o fomento à agricultura familiar. E não é apenas achismo. Os dados da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) indicam que a atividade ocupa apenas 24,3% da área agricultável brasileira, correspondendo a 38% da renda bruta do campo e a 10% do PIB brasileiro. Mas a produção é bastante significativa: 70% dos alimentos consumidos diariamente pelos brasileiros provêm do cultivo familiar. Já a grande indústria aplica seus investimentos na produção de soja e de milho, prioritariamente para incluir em rações de animais que serão abatidos.

O principal meio de fazer a comida chegar em escala é fortalecer a agricultura familiar, que é quem efetivamente coloca a comida na nossa mesa, abastecendo o mercado doméstico. Defendemos que a produção de comida seja descentralizada, utilizando todos os recursos e espaços disponíveis, rurais ou urbanos, o que faz com que as produções subam telhados e ocupem todos os espaços ociosos”, diz Luisa Haddad


As regiões mais afastadas da cidade não conseguem liderar o mercado de orgânicos por falta de incentivo, informação e mobilização. Mas, assim que se abre esse caminho, é possível mudar o que vai no prato, seja com hortaliças, temperos ou PANCs (plantas alimentícias não convencionais), que brotam aos montes em vários cantos e por muito tempo sequer sabíamos que poderiam servir de alimento. “A agricultura urbana é praticada por 800 milhões de pessoas em todo o mundo. Em São Paulo tem muitas iniciativas boas nessa área, como grupos que trabalham com assistência técnica rural aos pequenos produtores (Instituto Kairós), grupos que estão fortalecendo a cadeia de distribuição desse alimento, recebendo o alimento direto do produtor e vendendo a um preço justo em diferentes bairros em SP. (Instituto Chão, Instituto Feira Livre, entre outros), grupos que estão lutando fortemente contra o desperdício (Comida invisível)”, recordou Luisa.


Da quebrada para o mundo e do mundo para a quebrada

A ideia de que “comida boa é comida de rico” é tão ultrapassada que chega a soar um tanto cafona dentro de um país que está prestes a voltar ao Mapa da Fome, indicação da FAO para países com mais de 5% da população sem acesso à quantidade recomendável de calorias. Edson relembra que a fome deu origem a tantos pratos aclamados nos dias atuais. Toda a chamada ‘alta gastronomia’ veio do pobre, de condições as quais não havia nem o que comer. Os melhores consumès e caldos franceses vieram de situações adversas em guerras onde não se tinha o que comer e era preciso aproveitar tudo. E as pessoas cozinhavam o que lhe restava muitas vezes de outras refeições e faziam ali um caldo maravilhoso. Essa é a base da cozinha francesa”, contou o chef Edson Leite, que também participa da mesa "Alimentando as mudanças no mundo" no Festival Path.


Depois de viver parte da adolescência no Jardim São Luis, zona Sul da capital paulista, ele hoje acredita que teria um rumo totalmente diferente em sua vida caso a mãe e o padrasto não tivessem optado por colocá-lo numa escola estadual em um bairro nobre de São Paulo. Novamente voltamos a bater na tecla do acesso à informação como uma das ligações à comida adequada. Aos 10 anos, passou a estudar em Moema, que tem uma realidade bem diferente da periferia onde morava. “Lá tinha câmeras, duas quadras e não havia grades nos portões. E eu, com toda a revolta de periferia, onde vi meus amigos morrerem ou serem presos, não entendia aquilo tudo. Era uma escola estadual, então teoricamente era pra ser igual a da quebrada. Mas não era”, argumentou.

Aos 21 anos, Edson foi morar em Portugal e trabalhou com áreas diversas, inclusive a de lavar pratos no restaurante do hotel Tivoli. Foi lá que começou a abrir suas oportunidades dentro da gastronomia, migrando para outras funções e lugares. “Mesmo sem saber, ali, naquela fase da minha vida, minha mãe estava construindo quem sou hoje, o cara que foi pra fora do país aos 21 e que voltou aos 30 querendo mudar o local de onde saiu”. De volta à terra brasilis, não quis apenas voltar para a cozinha, mas para a periferia.


“Falar de gastronomia era uma coisa distante para a periferia há uns 4 anos atrás. E só se fala de periferia nas elites em época de eleição porque é aqui na quebrada que estão a maioria dos eleitores. Fazer gastronomia periférica hoje é resgatar origens. É fazer com que o nosso povo entenda que o que temos de melhor é o que está em nossas mãos, em nossa produção agrícola familiar, que foi se perdendo ao longo dos anos.”


Com o intuito de provocar transformações sociais através do contato com a cozinha, o chef criou junto com Adélia Rodrigues o termo e projeto Gastronomia Periférica. A dupla promove uma formação holística no aprendizado de técnicas de cozinha, por meio de oficinas de conscientização sobre desperdício e aproveitamento total dos alimentos, expandindo ainda as possibilidades profissionais dos jovens participantes.


“Quando os alunos e alunas entendem o poder que a gastronomia tem perante a sociedade e que podem sim ser empreendedores nesta área, descobrindo que podem encontrar PANCs (plantas alimentícias não convencionais) em qualquer terreno baldio ou na rua, é a transformação social através da gastronomia, é autonomia. Não se precisa mais esperar vir das políticas públicas, faça você mesmo a sua gastronomia”, diz Edson.

Ele destaca ainda que a alimentação na primeira infância é a prioridade e que a principal transformação dos jovens envolvidos no contato com a comida é social. Quero que a molecada daqui conheça os melhores lugares, os melhores restaurantes, as melhores ideias, mas sem esquecer que o melhor lugar de todos ainda é de onde viemos. A transformação começa em você como indivíduo, na sua casa, na sua rua, no seu bairro, na sua cidade, seu estado, seu país e aí partimos para o mundo. A maior transformação é o que eles trazem de volta para o local de onde vieram, e perpetuam as ações com as crianças que aqui estão”, finalizou.


Quer participar desse debate e saber mais sobre alimentação? Os participantes da matéria estão na programação do Festival Path, evento de inovação e criatividade que acontece nos dias 19 e 20 de maio de 2018, em São Paulo. Saiba mais em www.festivalpath.com.br

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