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Detox feito à mão: como a marcenaria virou terapia


Por Brunella Nunes

Esboçar, tirar medidas, cortar, lixar, montar e aplicar acabamento em peças de madeira conseguem transportar um bocado de gente para um universo distante. O trabalho manual tem um potencial gigantesco que, olha só, vai muito além do retorno financeiro. Em sua essência, de fato, o foco nunca é o dinheiro e sim o prazer pelo fazer. É dentro de tal pretexto que a marcenaria funciona como hobby terapia, um modo de se desligar, literalmente, do mundo externo e praticar algumas habilidades até então esquecidas.


Foi depois de uma forte crise de depressão que o engenheiro do metrô de São Paulo, com 25 anos de casa, Celso Yamamoto se interessou pela marcenaria. “Curti muito a empresa, foi bem gratificante. Ficava empolgadíssimo em falar sobre o metrô. Saí de lá exatamente por causa da saúde. Me cobrei muito. Acho que foi um legado da minha família, oriental, que cobrava demais e eu me exigia demais também. Cheguei ao fundo do poço. Estava no meio de 200 pessoas e me sentia só. Fiquei um ano e meio afastado, com pensamentos ruins, fazendo terapia e tomando antidepressivos”, relatou ao Panda.

Uma amiga de sua esposa estava prestes a fazer um curso e ele, inspirado pela ideia, resolveu fazer também, matriculando-se no Senai. “Isso fez parte da minha terapia e a crise revelou meu lado meio artista plástico. As crises são uma oportunidade de olhar para dentro. Sou um engenheiro menos sério. Se estou inspirado faço arte, se não estou, não coloco nem uma tinta na peça, com medo de estragar a obra”. O gosto pela atividade tomou proporções tão grandes, que ele largou a antiga profissão para ser marceneiro em tempo integral, abrindo a escola Madeira Viva em setembro de 2000.


Após 10 anos de dedicação total ao ofício, novamente teve uma crise, dessa vez ainda mais intensa. As dificuldades emocionais fizeram com que ele se tornasse uma pessoa religiosa, mas também ensinaram a principal lição de tal ofício: desacelerar. “Na marcenaria, o fator preponderante é a sensibilidade, respeitando os ritmos pessoais e até as características da própria madeira. É preciso avaliar qual dos dois focos prevalecem: quero aprender ou terminar um móvel? Se for a segunda opção, digo que minha escola não é o lugar, porque com a pressa de fazer alguma coisa, vem a cobrança e não é isso o que eu quero.”

Atualmente, é num galpão da Zona Sul onde ele, aos 61 anos de idade, se cerca de parte de seus amores: a cadela brincalhona Teka, livros, plantas, inúmeras peças de madeira e os alunos. No curso, ministrado de segunda-feira a sábado, não existe começo, meio e fim. É um descompromisso e, talvez por isso, seja tão agradável estar ali. O tempo é um aliado, não um inimigo. Aqui é o ensino de fazer arte em madeira, mas com qualidade de vida. É para saborear o que faz. No geral, as pessoas são muito exigidas e muitas vezes se exigem também. É isso que gera ansiedade, dificuldades…hoje eu sei disso porque cultivei muitos deuses e um deles foi o trabalho”.


Enquanto o Átomo visitava a escola, o telefone toca e era um antigo colega de trabalho, que com Celso aprendeu muitas coisas durante os turnos no metrô, em aulas de operação de trem. O contato era novamente em busca de aprendizados, mas dessa vez, restaurando móveis. Abre-se uma nova oportunidade com um velho conhecido. É esse eterno ciclo de trocas que formam as aulas, com apenas seis pessoas por turma, o que abre espaço para laços de intimidade. “Aqui tem muita diversidade, gente de todas as áreas, e ficar trocando figurinhas com eles é muito gostoso. Isso enriquece o meu dia a dia e me motiva. Nos integramos, somos como uma família, orgulhou-se.


Os alunos, de fato, perduram por inúmeros meses. A primeira delas, uma prima de Celso, frequenta as aulas há 17 anos. Há outros que vão colhendo histórias há 7, 9, 10 anos, além dos novatos. “A média de idade das turmas são de 30 a 50 e poucos anos. Mas de 18 pra cima…até 200 anos, podem fazer!”, brinca ele.

Rodeado por professores na família, o psicólogo Thiago Endrigo, de 36 anos, aprendeu a fazer marchetaria sozinho e teve ajuda de um amigo luthier para construir guitarras com as próprias mãos, instrumento aliado ao seu gosto por música. Ele manteve o hobby por algum tempo até se entregar a essa paixão por completo. “ Virei marceneiro quando me dei conta que esse tipo de trabalho é o que mais tinha a ver comigo, com quem sou, com o que deveria fazer da vida.


Essa decisão demorou um tanto para tomar forma, mas a virada aconteceu por volta de 2011 e desde então dedico-me exclusivamente à construção e restauro de instrumentos musicais, móveis, ferramentas e objetos de madeira”, contou.

A partir do momento que o passatempo se tornou profissão, houve mudanças, que ele encara de forma positiva. “A marcenaria me deu consistência, pude destinar minha ação no mundo realizando um trabalho que tem a ver comigo.


Embora qualquer trabalho tenha momentos estressantes, o mais importante para mim ou a maior dificuldade que pude superar foi finalmente ter encontrado e ter podido fazer o que devia fazer da minha vida.


Dono da escola-ateliê Saber Com as Mãos, tem entre 20 e 30 alunos, de todas as idades. A maioria, porém, é mirim, por volta dos 10 anos de idade. Isso não impede que eles façam móveis, instrumentos musicais, brinquedos, jogos, ferramentas. “Já dei aulas para crianças de todas as idades e cada vez mais percebo o quanto elas têm dificuldade em sustentar uma mesma atividade ou mesmo o próprio interesse. Não é uma regra e não se aplica apenas às crianças. Mas vejo pessoas muito acostumadas a ver coisas acontecerem com apenas uma passada de dedo na tela, ou um clique, e esta passa a ser a referência. Poder se concentrar é uma conquista, e como tantas outras, não acontece automaticamente nem prescinde de determinadas experiências. É algo possível, mesmo vivendo na era da distração.”


Tal linha de pensamento vai de encontro com o que ele acredita ser terapêutico na marcenaria: o fato de reestabelecer a conexão consigo e com o que existe ao redor. “Tem a ver com recuperar o fazer próprio e criativo, com se relacionar com as coisas, entendendo que elas guardam histórias, que carregam as intenções e as marcas das mãos de quem as fez. As coisas têm alma.

"É com a ajuda das mãos que tornamos ideias mentais em coisas concretas. A madeira cresce em árvores e essas árvores têm sua existência interrompida para que possamos usar a madeira, então algumas pessoas acreditam — e eu sou uma delas — que você não pode usar esse material em vão, que precisa dar outra existência digna à árvore-madeira — filosofa Thiago."


Autodenominada “fazedora e criativa”, a designer Joici Ohashi, de 26 anos, mantinha na infância dois hábitos modernos, que fizeram parte da história de muitos millennials: brincar com peças de LEGO e construir casas no jogo The Sims. As atividades, igualmente prazerosas, ajudaram a despertar seu interesse por trabalhos manuais. Enquanto cursava design de interiores trabalhou numa loja de móveis planejados e depois de formada resolveu colocar a mão na massa. “O que eu mais queria era ter algo feito por mim nas casas de clientes. ​Em 2015 fui para a Oficinalab (antiga LabMob) com intuito de continuar aprendendo e trocar trabalho pelo uso do espaço.​ Foi lá onde percebi que o hobby poderia virar profissão. Após conhecer de perto este ofício pude entender todo o processo de fabricação, que marcenaria não tem como ser ‘pastel’, e a dar mais valor aos materiais.


Atualmente ela integra a equipe de professores da escola, dando aulas para pessoas de aproximadamente 25 e 35 anos, mas segue descobrindo as maravilhas da marcenaria. O aprendizado é empírico. Podem passar anos e anos e ainda terei muito para aprender. É um mundo muito vasto que me possibilita criar a mesma coisa de diversas formas. Aprender é algo que me move. Por ser um espaço compartilhado, aprendo muito com os colegas de profissão. Compartilhamos experiências, trabalhos, fretes e a pizza no tardar da noite.”

"O trabalho manual nos traz calma. Para que tudo ocorra bem, temos que estar totalmente presentes em todos os sentidos, o tato, o olfato, ​o paladar, visão e audição. Cada trabalho manual exige algum desses sentidos um pouco mais do que o outro. E como é prazeroso ver a transformação! A matéria-prima se tornando algo novo, desde o fio de lã que vira cachecol para esquentar e a madeira que vira poltrona para nos sustentar. Acho mágico este processo."


A dupla Letícia Piagentini e Fernanda Sanino mantêm uma marcenaria em conjunto desde 2015, a Lumberjills. Quando fizeram cursos, em instituições distintas, eram uma das poucas mulheres da turma e, no caso de Letícia, a única entre 14 homens. Ao invés de se irritarem com as piadinhas ou desconfianças de suas capacidades, elas se divertiram com a situação e depois passaram a aproveitar as gentilezas por parte do público masculino, que por vezes “insiste” em carregar a madeira ou os móveis. Com o tempo notaram também que o julgamento foi diminuindo e a empolgação foi aumentando.

Depois de transformar o hobby em profissão, vem um questionamento à mente: como não gerar conflito entre um ofício com prazos e demandas e a atividade que é fonte de prazer? Para elas, o equilíbrio é a chave fundamental para manter hobby e profissão aliados, sem conflitos.


“Todo o trabalho tem aquela parte que gostamos um pouco menos de fazer, além dos imprevistos e acidentes. O prazo é sempre um ponto crítico, por isso é importante ter um período saudável para a entrega, que dê margem para lidar com os imprevistos que podem acontecer. O que acreditamos é que mesmo com a parte mais desafiadora do trabalho é preciso que na maior parte do tempo ele nos traga prazer. Quando essa equação fica positiva pro lado da satisfação, mesmo com os obstáculos o trabalho vale a pena.”

"Criar algo com as mãos é fantástico. Ver algo que você idealizou, uma peça que você tocou e cuidou de cada centímetro quadrado é uma sensação inigualável. Ou mesmo usar as mãos para transformar a ideia / sonho de alguém num projeto concreto é uma injeção de adrenalina! Acho que esse efeito é o que atrai tanto as pessoas para as práticas manuais."  —  Letícia Piagentini e Fernanda Sanino, sócias na Lumberjills


Marcenaria é: abaixar o metabolismo

Tanto Celso quanto Thiago notam, a partir do espelho ou de seus alunos, que existe uma carência muito grande em relação ao próprio tempo e aos benefícios que os trabalhos manuais trazem. As jornadas maçantes de um trabalho tipicamente corporativo e/ou universitário, os processos industriais e a era digital cada vez mais intensa ajudaram a cavucar o abismo entre as relações humanas, o contato real com alguma coisa.


“ No mundo que vivemos hoje em dia, totalmente conectados e olhando sempre pra uma tela, buscar pelo simples como os processos manuais parece nos fazer mais humano, pois nos empoderamos. Acho que a crise financeira também foi algo forte para fazer a galera colocar a mão na massa e se reinventar, ver que voltar a ser simp​les não significa regredir e sim nos traz conhecimento e o poder de fazer com as próprias mãos”, esclareceu Joici.


Para os designers Caio Abi-Ramia e Pedro Chagas, do makerspace Semente(RJ), o trabalho manual sempre foi ligado ao lado profissional, mas isso não impede que eles tenham um lado zen. “A marcenaria em si nos traz também uma fuga da rotina de prazos, compras, vendas, estresse. Procuramos deixar um tempo nosso para produção de objetos e projetos pessoais, o que nos desliga um pouco da rotina de ‘escritório’. A marcenaria é algo que mesmo estudando uma vida inteira nunca se saberá tudo. A madeira é um material orgânico, vivo, então sempre temos um desafio diferente, como variação das fibras, a temperatura que está no local, a umidade, enfim, todas variações ambientais (…) A contemplação do objeto produzido se torna algo íntimo entre criador e criatura. E é tudo isso que fez com que nos apaixonássemos por esse universo.”


Lidar com as imperfeições, exercitar os sentidos, ter paciência, concentração, foco e um tipo de ligação profunda com o que está em produção são alguns dos moldes terapêuticos da marcenaria, que não necessariamente exige a comprovação de estudos científicos. O resultado de seus benefícios não vem do trabalho pronto e sim de seu processo. “Há uma experiência sensorial e estética incrivelmente bela em preparar uma ferramenta, trabalhar a madeira, imprimir determinada forma, observar os veios, cores, peso, cheiro… ouvir as sugestões da própria madeira sobre o que quer ser. Isso se você está desperto para ouvir, recorda Thiago.


A natureza, perfeitamente imperfeita, oferece matéria-prima semelhante aos marceneiros e alunos: nenhuma madeira é igual a outra. Há arranhões, fissuras, manchas, curvas, alturas, larguras, resistências e texturas distintas. A partir da relação cultivada com ela, uma peça única se forma, como um embrião, cultivado e esculpido por meses dentro do potencial criativo de cada criatura que a toca com as mãos. É um filho material, que faz os olhos brilharem com o orgulho de quem diz: fui eu que fiz.

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