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Entre batidas de amor e ódio

Ame ou odeie, há mais de 20 anos que o funk resiste no Brasil. Entre ameaças de criminalização e milhões de reais movimentados, o baile segue. O Panda foi conversar com quem vive o movimento pelo país para entender como e por quê.


Por Carla Furtado


A dançarina Renata Prado na Batekoo, festa que produz, em São Paulo. (Reprodução)

O funk incomoda. Desde seu primeiro grande estouro nacional para o mainstream, no início dos anos 2000, seu furacão de batidas, danças e letras inusitadas causam impacto e problematizações. O funk é amado. É ele que embala a trilha sonora que retrata o Brasil através de seu maior cartão postal, o Rio de Janeiro, muitas vezes tomando o lugar da bossa nova e do samba, sendo impossível deixá-lo de fora em cerimônias mundiais, como a de Abertura das Olimpíadas de 2016.


2017 foi um ano e tanto para o funk: correu o risco de ser proibido através da tentativa, frustrada, de 20 mil pessoas aprovarem um projeto de lei de criminalização, ganhou projeção internacional, com a cantora Anitta representando o lado mais pop do ritmo no topo das paradas de sucesso, e celebridades como Madonna compartilhando os filhos curtindo o hit "Olha a Explosão". Também foi o ano em que o número de ouvintes de funk aumentou em 200%.


Falando assim, até parece que o assunto é uma pessoa, e não um estilo musical. O fato é que o funk já é um movimento social que a cada dia ganha mais força política e monetária e obriga a sociedade a encará-lo com seriedade. Mas afinal, para quem vive dele, o que o funk tem que incomoda e fascina tanto?


Paixão

Do Bonde do Tigrão para cá são muitos os desdobramentos do funk, do proibidão ao melody e ostentação. Na pista, tem quadradinho de oito, sarrada no ar, passinho e por aí vai. O que une todas as vertentes é a sua origem: a periferia, tão carregada de significados.


Público dança na Batekoo, em São Paulo (Reprodução)


“O funk sempre foi estudado por pessoas brancas e que não fazem parte do seu universo. Muitas das problematizações vêm daí”, afirma Renata Prado, 27, dançarina, produtora da festa Batekoo em São Paulo e diretora da recém-formada Frente Nacional das Mulheres do Funk, organização que combate o machismo no meio através do protagonismo da mulher.


Assim como boa parte das meninas da sua geração, Renata descobriu a dança com o sucesso do É o Tchan! nos anos 90. O axé foi substituído com paixão pelo funk, mas seguir esse caminho profissional não foi algo visado desde o início, muito menos desejado pela família. “Eu vivi nos fluxos [festas funkeiras de rua com sistema de som nos carros, mais comuns em São Paulo] dos 13 aos 19 anos, mas quando terminei a escola minha mãe disse ‘chega de baile, vai tomar um rumo na vida!’, e fui me dedicar aos estudos pré-vestibular”, conta a estudante de pedagogia, “Eu nem encarava isso como profissão, que é a que eu tenho hoje, porque não tinha nenhuma representatividade. Ninguém me encorajava, pelo contrário, porque mulher dançarina é muito sexualizada, então as pessoas só atrelam ao negativo.”


Foi só como universitária e pesquisadora, aos 25 anos, que Renata se reaproximou do funk, e assumiu sua profissão de dançarina. O que fez a diferença foi conhecer profissionais na área, como o carioca William Severo, 27, integrante do Imperadores da Dança, primeiro grupo de passinho do Brasil, estilo queridinho do momento.


“Quando o gravezão bate no seu peito, tu sente dentro de você o BUM e parece que tá dançando sozinho", conta Severo. "Eu me apaixonei com 5 anos, quando fui em uma festinha de rua perto de casa, na comunidade de Manguinhos, e vi Os Ousados. Eu ali, menorzão, achei surreal os caras dançando pra caramba."

Aí eu perguntei: "O que é isso que vocês fazem?"

O Pit respondeu: “Isso aqui é meu trabalho”

E eu: “Caraca, isso é teu trabalho? Vocês dançam, tão se divertindo pra caramba e ainda ganham dinheiro??”

Aí ele falou assim: “É!”

E eu: “Hã, quero ser dançarino como profissão.”

A visão profissional do Severo de 5 anos se manteve, e o dançarino já participou de trabalhos como a versão do Banco Bradesco para o clipe de “A Carne”, de Elza Soares, e a Cerimônia de Abertura das Olimpíadas, em que dançou passinho. “O nome da dança é ‘passinho foda’, porque só passinho pode ser várias coisas, tipo passinho de baile charme, etc. A gente acaba abreviando e falando só passinho, mas o certo é ‘passinho foda’”, frisa.


“Quem mora na comunidade por ser o que quiser, mas a arte transforma.” Ouvir Severo falando de sua relação com o funk não é muito diferente de como outro artista apaixonado fala de sua função, seja tocar um instrumento, pintar quadros, ou escrever poemas. No entanto, o funk é marginalizado com argumentos fortes, como a objetificação da mulher e a apologia ao crime e às drogas em letras, além de relatos de violência em bailes funk pelo país, ainda que essas sejam problemáticas que estão longe de serem exclusivas do universo funkeiro.


Festa Batekoo em São Paulo (Reprodução)


Proibidão

A página no Facebook Observatório do Funk surgiu após o assassinato de um rapaz de 14 anos num baile funk em Belo Horizonte, o que foi relatado por Kdu dos Anjos, 27. A iniciativa promove debates e noticia o que acontece nos bailes da perspectiva dos próprios frequentadores, o que reflete muito o ecossistema da periferia, que tem como premissa se apoderar de suas questões para buscar soluções dentro das condições que têm disponíveis.


“A verdade é que só dá ruim quando a polícia vai, os bailes têm uma autogestão que eu acho incrível. Nos próprios eventos de Facebook eles escrevem assim: é proibido mijar no beco, é proibido usar loló, é proibido tirar foto, porque pode aparecer algum traficante armado, alguma coisa assim… Eu nunca vi briga e sou peão de baile. Acho que a polícia fica grilada porque querem a parte deles. Quando tem muita gente, automaticamente a tia da bebida vai vender, o tio do churrasco vai vender, assim como a boca vai vender também”, opina Kdu, que é o idealizador do Centro Cultural Lá da Favelinha.


O espaço movimenta o empreendedorismo da comunidade e oferece eventos e mais de 16 oficinas gratuitas semanalmente, de yoga a canto, passando, é claro, pelo passinho.

Mas o problema não para na localização e frequentadores dos bailes, até porque foi-se o tempo em que se limitavam às favelas. O conteúdo ainda dói no ouvido de muita gente, que precisa deixar o pudor de lado ao se deixar levar pela batida. “A favela não tem meio termo, se é explícito, é explícito. É tijolo na cara, falta do reboco, vizinho do lado e do outro, na frente e atrás. Os MCs até fazem versão light, mas no baile ninguém gosta”, diz Kdu. “Quando um moleque tá cantando um proibidão, ele tá cantando a realidade que ele vive. Se a sociedade não quer escutar o que ele fala, tem que mudar a realidade do moleque”, completa Severo.

Se os adultos são contagiados pelo batidão, o mesmo acontece entre a criançada, deixando muitos pais numa saia justa. Na contramão, há quem tire a situação de letra, como Renata Morais, 32, mãe da Elis MC, dançarina de 6 anos que desde muito cedo sacudiu ao ritmo do funk e teve seus vídeos de dança viralizados na internet. Elis foi encorajada pelos pais, que até criaram uma festa só para isso: o Bailinho da Crespinhos, que virou o Vem Dançar com a Elis, evento que procura valorizar os movimentos musicais da cultura negra, como o funk.


“O funk está na escola, no transporte em que as crianças vão pra escola, na rádio, na roda de brincadeira, na rua”, afirma Renata, que vive num bairro de classe média no Rio de Janeiro, e apesar de não ser da favela se identifica com o movimento.

“Não tem nenhum problema em uma criança ouvir funk, o problema é o preconceito que vem por uma questão racial e social. A criança não tem malícia, ela gosta pelo ritmo, pela rima. Claro que em casa não ouvimos funk com palavrão e eu coloco limites numa dança sensual, mas se eu falo que a mulher pode ser o que ela quiser, não tem como eu falar que ela pode ser tudo, menos funkeira. Minha filha pode ser funkeira sim.” — Renata Morais, mãe da Elis MC.


A primavera de consciência política e social que as minorias tem vivido também atingiu a noite. Um reflexo disso são as novas festas que tem substituído as antigas baladas por fervos com recorte social. Além de dançarina, Renata Prado é produtora da edição paulistana da festa Batekoo, que começou em Salvador em 2014, uma criação de dois amigos DJs negros, gays e de favela, Maurício Sacramento e Wesley Miranda.


“A Batekoo é um baile funk diferenciado, nela os homens héteros nunca serão a maioria. Isso acontece naturalmente, nunca fizemos um regulamento, a festa é aberta. O nosso público são as gordas, as bichas afeminadas, as travestis, as minas lésbicas, as pretas, os renegados da sociedade. São pessoas de periferia que tem uma consciência racial e política um pouco mais avançada que a galera dos bailes comuns”, diz Renata. Hoje a festa também acontece no Rio de Janeiro e em Brasília, com edições lotadas e ingressos na faixa dos R$20.


“É claro que tem letra que incomoda, mas não é no que a mídia e a sociedade costumam apontar”, opina a dançarina Renata Prado. “Eu não tenho problema nenhum em falar de sexo, nem em dançar funk putaria. O real problema é como a mulher é colocada nisso. Só ‘senta no meu pau, senta, senta’ não é legal. Que horas vai falar de me chupar e me dar prazer? Porque se fizer uma música em que os dois gozam, por mim não tem problema. Normal. A sociedade não quer que o funk fale sobre sexo, mas eu acho que se o rock, o samba, o sertanejo falam, então o funk pode falar também.”


Ostentação

Entre uma série de problematizações, o funk já tem muito mais para ostentar além dos tênis de marca e as correntes de ouro, ainda que os ganhos materiais estejam numa crescente: o canal de Youtube do Kondzilla, maior diretor e produtor de vídeo-clipes de funk, bateu mais de 23 milhões de inscritos neste ano, sendo um dos mais acessados do mundo. Com a plataforma, que engloba canal, site intitulado como o maior portal de conteúdo para jovem de favela, e agência de MCs, o empresário fatura mais de 1 milhão de reais mensalmente.


“Desde o início cuidamos dos artistas e selos de funk de forma justa e com seriedade profissional. Entregamos um serviço de autogestão de distribuição que devolveu o controle sobre a monetização de fonogramas e hoje colhemos bons frutos desse pioneirismo”, conta Iasmine Amazonas, gerente de marketing da empresa de distribuição digital ONErpm, responsável por campanhas e por parte da administração do canal Kondzilla desde 2015.


A empresa é responsável pela distribuição digital de milhares de artistas brasileiros de diversos estilos musicais, mas a presença massiva fica entre funkeiros e sertanejos, os ritmos mais populares atualmente. No topo das paradas do Spotify, estão Mc Fioti, do hit “Bum Bum Tam Tam”, com mais de 3 milhões de ouvintes mensais, e Mc Zaac, de “Vai Embrazando”, com mais de 2 milhões. No Youtube, as visualizações passam das 300 milhões.


“O funk está muito organizado, não é mais aquela coisa de antigamente, e isso assusta”, acredita a mãe de Elis. Enquanto nas plataformas digitais as letras mais adultas ficam no topo das paradas, na televisão o espaço que existe é para o pop light, como o grupo Dream Team do Passinho, que apareceu para o mundo ao subir ao palco do Rock In Rio 2017 no show da norte-americana Alicia Keys. “Em programa de televisão só aceitam o Dream Team do Passinho, Ludmilla cantando versão light, Anitta. A gente é super fã, a Elis até participou do último clipe do Dream Team, mas a galera que criou tudo isso ainda não é reconhecida, fica só no Youtube, nos festivais de comunidade.”


O funk no Brasil é um ecossistema diverso e não é possível olhar para ele de maneira rasa, é necessário um mergulho. Para Renata Prado, é imprevisível: “O funk é diferente de outros movimentos, muda muito rápido, é orgânico. É um modo de vida, é minha essência. Quem vive sabe o que é. Não existe uma coisa que te define, tipo ser MC, ou dançarino, não, o funkeiro se comporta como funkeiro e pronto.”

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