Dominic Barter roda o mundo pesquisando de que maneiras podemos nos relacionar livres de violência. Em entrevista ao Átomo, ele fala como compreender os atritos - e não fugir deles - é um dos caminhos.
Por Carla Furtado
Não é possível ser uma ilha. A vida é a arte do encontro, já diria o poetinha, e muitas vezes esses encontros vêm acompanhados de atritos, seja com quem amamos ou detestamos. “Interdependência não é apenas algo que você gosta ou não, é um fato. Seu bem-estar e o meu estão intimamente relacionados”, disse Dominic Barter para uma plateia de mais ou menos 200 pessoas, numa noite de sexta-feira na Casa do Povo, em São Paulo.
Tudo ali é feito em conjunto: a alimentação, o cuidado com as crianças, e o financiamento do encontro — que não é nem gratuito nem cobrado — é responsabilidade de todxs. O evento, explicado por Dominic como “um laboratório ambulante de desfazer os nós da cultura de dominação”, era o início de um fim de semana de Introdução à Comunicação Não-Violenta, pesquisa iniciada pelo psicólogo norte-americano Marshall Rosenberg, com quem Dominic conviveu por 18 anos.
Foi quando ainda morava em Oxford, na Inglaterra, que Dominic se aproximou do tema. Um dia, ao sair da escola em que trabalhava com uma colega, ia começar a chover. “Ela estava guardando sua bicicleta no carro e eu estava a pé, então eu pedi a bicicleta e ela explicou porque não queria emprestar com tal clareza que revelou muito bem a razão da sua decisão. Eu não soube responder e acabei indo pra casa na chuva, e me molhei! No dia seguinte, cheguei e brinquei: eu te perdoo se você explicar o que fez ontem!” A colega estava estudando Comunicação Não-Violenta e foi uma questão de tempo para que Dominic procurasse o próprio Marshall na Suíça, onde ele vivia na época, em 1996.
Hoje, Dominic mora no Rio de Janeiro há 25 anos. A princípio, foi por conta de um romance que se estabeleceu na cidade, mas foi seu trabalho que o manteve no Brasil. Primeiro foram os Círculos Restaurativos, processo comunitário feito por ele em conjunto com jovens de favelas cariocas, para lidar com conflitos de maneira transformadora. Atualmente seu trabalho, não apenas no Brasil mas em mais outros 23 países, é dividido entre a prática da Justiça Restaurativa e da Comunicação Não-Violenta (são dezenas de encontros por ano, que movem centenas de pessoas), a mediação de conflitos e a escola pública Espaço Beta (RJ), da qual ele é co-fundador.
O Panda conversou com o líder humanitário sobre sua trajetória e sobre talvez um dos maiores desafios da humanidade: ouvir e se expressar de maneira sincera, sem temer o conflito e com muito menos chances de "dar ruim". Será que rola?
Sob a ótica do seu trabalho, o que é violência?
O Marshall descreveu violência como a expressão trágica de necessidades não atendidas. Essa pra mim é uma descrição muito abrangente. Uma outra maneira de pensar violência é como uma expressão de desempoderamento que procura vencer com força uma distância no entendimento. E as maneiras como isso se expressa dependem do histórico e do contexto em que as pessoas estão. Por isso não é preciso dizer que existem pessoas violentas, mas sim que existe o comportamento que utilizam no contexto em que estão.
"Quando pessoas são marginalizadas do acesso aos recursos que precisam para viver vidas plenas, a possibilidade de expressões violentas, contra elas mesmas ou com os outros, aumenta muito. E isso acontece emocionalmente, em termos de sentido de vida, socialmente, em todos os níveis."
Além da Comunicação Não-Violenta, você também aplica métodos de economia da dádiva e Justiça Restaurativa. O que esses conceitos têm em comum?
A não-violência foca nossas energias a serviço da vida. Os sistemas econômico e de justiça são dois pilares da nossa sociedade, atualmente orientados para separar e excluir. Diminuem a viabilidade de uma convivência harmoniosa entre pessoas, entre nós todos e o sistema maior da vida na Terra. Então a não-violência pesquisa ativamente a transformação desses sistemas irmãos. Como andam de mãos dadas na atual lógica de dominação e medo, podem andar juntos também numa cultura de parceria.
A Justiça Restaurativa coloca essa cultura em prática ao criar espaços seguros para a verdade e o diálogo, onde aqueles impactados por um conflito ou desavença podem se compreender, reparar laços e danos materiais e costurar novas relações de convivência.
A economia de dádiva transcende a lógica de cobrar e pagar e nos convida a assumir a corresponsabilidade para criar as condições de vida que queremos para todos. Juntos, fortalecem ainda mais o poder de cada um.
Dominic Barter (Reprodução)
"Se as pessoas estão se comunicando de uma forma violenta não é simplesmente por escolha própria. É porque elas foram educadas a fazer isso e estão vivendo em contextos sociais que apoiam isso."
Como foi sua trajetória até encontrar a Comunicação Não-Violenta? O que te levou a se interessar pelo assunto?
Eu sempre me interessei muito pela capacidade coletiva de cuidar um do outro e do mundo. Estava simultaneamente interessado em cura, teatro, política, arte, reeducação… Para mim esses assuntos eram todos o mesmo por dentro, mas entendi que para algumas pessoas eram muito separados. Quando li o poeta inglês Shelley dizer que os poetas são os primeiros legisladores do mundo, isso fez um sentido muito profundo pra mim!
Até que cheguei num ponto em que esgotei a energia de ir pra frente, porque especialmente no ativismo político vi que a gente reproduzia as mesmas dinâmicas que combatia. Respondendo a esse impasse, como também à violência e o racismo que via na sociedade e em mim, comecei a ouvir jovens. Isso deu no desenvolvimento dos Círculos Restaurativos no Rio. Logo depois eu conheci o Marshall Rosenberg e vi que ele entendia o tipo de dinâmica que eu estava observando nos morros. De uma forma diretamente verificável, ele falava uma coisa e dois minutos depois você o via fazendo. Em nossos encontros hoje também é assim, eu apresento uma ideia e o resto do tempo é prática. A teoria da CNV é somente necessária para fazer a mente agitada ficar calma, mas 90% do foco é na ação.
Você tem notado um aumento na disposição das pessoas em querer dialogar com quem pensa diferente de si ou ainda é um impulso da minoria?
Vejo um claro aumento de consciência acerca da importância de dialogar. Mas quem pratica na hora H ainda é uma minoria. E os atuais debates políticos — importantíssimos — mostram o quão longe estamos da capacidade de ouvir as mensagens por trás das palavras e ações daqueles com que discordamos. Até que essa capacidade aumente a promessa de democracia continuará um sonho distante. Sem saber dialogar, nossa cultura tem medo de conflito. E democracia necessita do conflito saudável entre possibilidades diferentes, sem a desumanização do outro.
Como você enxerga a comunicação e a capacidade de diálogo dx brasileirx em relação a de outros países?
Digo há muitos anos que a ausência de diálogo é fatal. Fatal para a convivência social, para o pacto básico de uma comunidade maior. Fatal nas famílias, nos grupos, empresas, escolas, coletivos. O brasileiro vive na pele a importância disso, e os custos da sua ausência, todos os dias. Mas nos outros 23 países onde tenho trabalhado eu vejo que cada um, do seu jeito, também vive. Talvez a seriedade com que o Brasil começa agora a tratar esse assunto pode ser um luz para os outros.
Como devemos agir quando queremos dialogar com uma pessoa que está sendo violenta, física ou verbalmente, conosco?
Para dialogar, é necessário estar fisicamente seguro. Então, se há violência, eu me distancio para não me machucar. Porém, eu faço isso para me aproximar dialogicamente. Não quero me distanciar da pessoa em termos de presença.
Para isso eu preciso de um sistema de apoio. Isso me fortalece para não me submeter, nem contra-atacar. E para enxergar que, apesar da forma e do vocabulário que a pessoa está utilizando, aquela é a melhor maneira que ela sabe se manifestar no momento. O ponto de mudança não é na fala do outro, é na minha escuta. E isso é muito empoderador porque faz com que eu possa buscar o sentido por trás desse comportamento escandaloso, ou perigoso, do outro. A outra pessoa está tentando contar, com seu grito ou silêncio, mas muitas vezes é bastante difícil eu entender o que ela está falando quando está desesperada.
Às vezes é útil checar, perguntar o que a pessoa está querendo dizer com aquilo. E uma forma muito honesta de fazer é simplesmente chutar, por exemplo dizer: “você está extremamente contrariado e está querendo uma resposta justa para essa situação?”, ou o que for. E isso não é técnica. É eu assumir que não sei o que está motivando o outro e demonstrar que me importo com ele, e com a fonte da sua raiva, desespero, ou medo. Pode ser a necessidade de segurança, ou de eficiência, ou de reconhecimento.
Nessa checagem, que eu chamo de “pergunta empática”, evito concordar ou discordar do outro, simplesmente faço companhia. E isso pode ser um grande aliado para revelar a boa razão por trás de um jeito ruim.
Dominic em ação (Marcelo Manfrini — Original Foc)
Como alguém pode identificar que se comunica de maneira violenta?
O ponto é mais entender como nós podemos aprimorar nossa capacidade de reconhecer que quando nos comunicamos com nós mesmos, com o outro, ou nas parcerias que criamos coletivamente, estamos manifestando uma certa lógica e usando o poder de um certo jeito.
A questão é: esse jeito de usar o poder está servindo à vida? Está criando a vida boa que a gente quer pra todos? A Comunicação Não-Violenta faz essa pergunta e nos convida a questionar e transformar a maneira que usamos o nosso poder.
Se as pessoas estão se comunicando de uma forma violenta não é simplesmente por escolha própria. É porque elas foram educadas a fazer isso e estão vivendo em contextos sociais que apoiam isso. No momento não veem outra opção: ou internalizam a violência contra si, ou atacam o outro, ou combinam um tipo de “simpatia seca” entre elas que acaba por distanciar todo mundo e deixa cada um como um indivíduo isolado do outro. Nenhuma desses três opções é sustentável.
Quais os maiores obstáculos que as pessoas encontram ao decidir mudar a forma como se comunicam?
É parecido com os obstáculos que eu encontrei ao cruzar a rua quando cheguei ao Rio pela primeira vez: toda minha vida minha cabeça virava para a direita porque esse era o jeito que eu encontrei pra evitar que eu morresse num acidente de trânsito. E o que eu descobri é que apesar de o trânsito aqui estar obviamente vindo da esquerda, e de eu precisar virar minha cabeça para esse lado para não morrer, meus músculos continuavam obedecendo o hábito que eu tinha aprendido em outro contexto. Nossa maneira de conviver com os outros, de se relacionar, é igual.
"A gente continua seguindo regras desenvolvidas muitos anos atrás para um mundo que não existe mais, ou que nos faz mal. Então o desafio é de identificar o hábito de uma vida, suspendê-lo, e assim criar espaço para desenvolver um novo comportamento."
Hoje usamos muito mensagens de texto para se comunicar. Se pessoalmente, com gestos e tons de voz já existem mal entendidos, como você enxerga o uso recorrente de mensagens à distância para tratar todo tipo de assunto?
Vejo isso como sendo igualmente problemático e vantajoso. É bom porque possibilita um jeito de comunicar muito mais ágil, que vence as distâncias. Muitas das falas de que a gente mais se arrepende depois foram ditas no calor do momento, sem refletir. Ao escrever as mensagens de texto, tenho um segundo momento para ler antes de mandar e nisso eu posso pensar uma segunda vez. Isso tudo é muito vantajoso.
O desvantajoso é que comunicação é muito, muito mais que linguagem. Eu perco toda a música, a fisionomia, o senso que temos do organismo do outro quando estamos frente a frente, todas as mil maneiras que a gente se comunica e que não envolve palavras. Então comunicação à distância, pelas redes sociais, por mensagem, é muito sujeita a mal entendidos por causa disso. Se torna ainda mais importante checar se a mensagem mandada foi recebida no espírito que a gente mandou. E pra isso é só recuperar aquela pergunta básica: “Entendeu?”, “Fui claro?”, e adaptar um pouquinho, porque se é deixado no formato de sempre, a outra pessoa responde “Entendi!”, e você não sabe o que ela entendeu. Uma adaptação útil para mensagens poderia ser “O que você me ouviu dizer?”, ou “O que você entendeu?”
Muitas pessoas conseguem manter a integridade no ambiente profissional, ou mesmo social, mas dentro de casa explodem e agridem os mais próximos. Por que você acha que isso acontece tão frequentemente?
Talvez um dos fatores seja histórico, porque essa é uma tendência em colônias portuguesas, de lidar bem com seus vizinhos mas guerrear com os familiares. Por outro lado, eu entendo que isso é muito ligado à maneira que aprendemos a nos comportar intimamente, o que segue muito uma lógica de dominação. Os pais são instruídos a dominar os filhos, os homens a dominar as mulheres, e isso não faz bem a nenhuma das partes. O resultado é que muitas vezes nossa vida afetiva é um campo de guerra. Há muito, muito sofrimento secreto acontecendo nas famílias das pessoas, obviamente não só no Brasil. Pra mim, uma das coisas mais bonitas é ver como a não-violência pode transformar essas relações familiares e íntimas que são onde nosso bem estar psíquico mais se prende. Na minha vida pessoal tem feito toda a diferença.
É muito comum pessoas de cargos superiores usarem do tom passivo-agressivo para falarem com colegas que estão num cargo inferior na empresa. Por que acha que isso acontece?
Eles cresceram observando outras pessoas fazendo a mesma coisa e são estimulados a manter a lógica. Muitos ambientes de trabalho usam hierarquia não simplesmente pela sua utilidade mas também como parte de uma cultura interna que separa as pessoas. E também, a empatia não sobe nem desce ladeira muito bem, ou seja, a tendência é eu ter empatia por pessoas que valido como tal, que estão no mesmo nível de mim, e não por quem está acima ou abaixo. Assim, as pessoas são muitas vezes subnutridas de apoio e o jeito delas de agir expressa essa ausência de serem vistas como seres humanos tentando contribuir. São muitos os motivos mas, dentre eles, acho que esses três são chave.
De todas as maneiras existentes para nos comunicar, qual é a que você acha a ideal?
Aquela em que somos sinceros sobre a maneira que a presença do outro está nos impactando. Expressar gratidão quando você tem, encontrar formas para fazer visível o quanto a maneira do outro agir te impacta, positiva ou negativamente. Assim, nós nos reempoderamos da imensa diferença que fazemos na vida um do outro.
"A gente revela pouco do que está acontecendo conosco, a nossa cultura considera a vulnerabilidade uma demonstração de fraqueza. Mas, na verdade, só os mais fortes tem a capacidade de se vulnerabilizar."
Quer praticar? Para ir a uma Introdução de Comunicação Não-Violenta, siga a página do Dominic Barter no Facebook. Por lá ele avisa dos encontros, que são frequentes.
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