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Se sua marca não fala com as pessoas negras, você está perdendo dinheiro

Especialista em comportamento e consumo da população afrodescendente fala sobre a relação das marcas com esses consumidores que movimentam cerca de R$ 1.6 trilhões ao ano


Por Carla Furtado

Muito tem se falado sobre o empoderamento da população negra, tanto que só falar e não agir em prol da causa ficou feio. Aos poucos as estruturas estão se movimentando e, em meio disso, muitas empresas que nunca seguiram essa direção hesitam nos passos dessa dança. Mas sempre tem alguém para guiar a coreografia, e Fernando Montenegro é uma dessas pessoas.


Especialista em comportamento e consumo da população afrodescendente na Think Etnus, ele trabalha para que as empresas possam dialogar de forma apropriada com esses consumidores que hoje representam aproximadamente 60% da população brasileira e movimentam cerca de R$ 1.6 trilhões ao ano. Ou seja, mais que uma causa ideológica, ignorar essa parcela da população é perder dinheiro.


Na entrevista abaixo, Fernando explica que mudanças já podem ser vistas no cotidiano das pessoas, como as marcas podem dar os próximos passos, e qual a importância dos nichos de mercado, algo que ainda é visto como segregação por parte da população.

Como o nicho de mercado (ou seja, marcas, produtos e eventos declaradamente focados numa população), pode ser importante para uma sociedade mais equilibrada e não ser segregador?

Os nichos são importantes porque ajudam direta ou indiretamente na construção do imaginário da população negra. É importantíssimo relembrar que, desde a época do tráfico de africanos, houve uma atuação efetiva do Estado e da sociedade para que nós, negros brasileiros, fôssemos esvaziados de toda nossa cultura. Isso teve início com os portugueses e, posteriormente, com outros europeus que imigraram para cá. Criou-se uma população afro-brasileira sem identidade cultural, simbólica, imaginária. Por exemplo, até outrora as marcas só produziam produtos que atendessem uma demanda branca (cabelos lisos, pele clara, corpo com quadril menos curvilíneo, tolerância à lactose, alimentos sem pimenta, etc). Isso foi considerado segregação? Não! O que está acontecendo nesse momento é um resgate cultural, identitário. Simplesmente estamos reivindicando um pertencimento dentro de uma sociedade construída por meio do sacrifício da vida dos nossos ancestrais. Dar identidade aos indivíduos por meio do consumo consciente, por exemplo, contribui para o alimento saudável da psique desse grupo. As marcas segmentadas têm um papel fundamental nesse sentido, pois ajudam a resgatar a autoestima, criar identidade. Elas dizem: “Ei, você existe e é linda, é lindo!”


O “boom do empoderamento negro” no Brasil está começando a esfriar? Podemos esperar mudanças efetivas e estruturais após a onda hype do tema?

Não creio que empoderamento negro seja somente um boom. Talvez falar sobre o tema especificamente seja a pauta do momento, porém os diversos movimentos continuam e não esfriarão. As pessoas da nova geração, principalmente, estão se conhecendo melhor do que as de gerações passadas. E isso é fruto de lutas antigas dos diversos movimentos que vieram antes de nós. A internet tem um papel fundamental nessa conexão e no alcance em larga escala das pautas e conscientização da população negra. Por exemplo, mesmo que não tenham muito acesso a esse assunto dentro de casa, hoje as crianças assistem a mais vídeos, ouvem mais discussões sobre o tema e crescem com um pensamento crítico diferente. Já desenvolvem uma consciência negra na infância.

Na Think Etnus, fizemos um levantamento questionando afrodescendentes e constatamos que 35,02% dos entrevistados passaram a se autodeclarar como “negros” nos últimos 8 anos. Esse número é muito alto e pode ser lido como reflexo dos elementos citados anteriormente. Não digo que isso seja geral, mas faz parte de um contexto a ser considerado. Parte dessa influência se dá, não pelos meios de comunicação ou pelo consumo, mas sim pelos que chamamos de “influenciadores reais”, que são as mães, os pais, a irmã mais velha, aquela que é a primeira da família a entrar na universidade. Lembre-se que a sociedade nunca representou a população negra, logo, o aspiracional dessas pessoas foi construído em bases frágeis.


Em termos práticos, como a representatividade em propagandas e embalagens de produtos tem mudado a economia e a realidade da população negra brasileira?

Podemos enxergar sob diversas perspectivas. Em um estudo que estamos conduzindo, temos constatado previamente que, a partir do momento em que a mulher negra deixa de alisar o cabelo e passa a usá-lo de forma natural, sua autoestima muda, cria-se uma consciência negra. Ela passa a consumir mais produtos voltados a sua identidade e aumenta ainda o ticket médio de suas compras: antes ela gastava com alisamento e corte; hoje, faz hidratação, tem xampu, condicionador, ativador de cachos próprios para o seu tipo de cabelo, se maquia, usa acessórios etc. Além do mais, temos percebido que a vida profissional dela melhora, ela passa a ter mais segurança no ambiente de trabalho e, por consequência, almejar novos desafios. Agora, do ponto de vista do empreendedorismo, a população negra tem se encontrado. É aquela velha lei da oferta e demanda: em estudo realizado pela Think Etnus e publicado em 2017, 61% dos entrevistados afirmaram que comprariam mais de marcas que os representassem esteticamente e biologicamente.


"Estamos falando de um mercado que movimentou em consumo, pelo menos 1,6 trilhões de reais em 2017. Existe uma demanda represada, querendo consumir com consciência, no entanto, não existe oferta para esses quase 110 milhões de brasileiros. Vai demorar, mas as coisas estão mudando."


Em que países o afroempreendedorismo brasileiro pode e deve se espelhar para obter maior sucesso sócio-econômico? Existe algum grande case?

O afroempreendedorismo norte-americano é o principal. Nos EUA, existe um consumo e uma oferta muito madura, onde encontramos desde maquiagens especificamente desenvolvidas para as características biológicas da pele negra, até protetores solares específicos para pele negra. Além disso, o governo norte-americano possui políticas públicas direcionadas a afroempreendedores americanos, tratativas crediárias que consideram o contexto social desse grupo racial. Outro mercado que vale se espelhar é o nigeriano. Lá há um olhar voltado a atender às demandas locais da população, com a produção feita por e para negros, como a Nollywood, que é a Hollywood nigeriana, produzindo filmes, séries e novelas que tenham uma representação negra nigeriana e que movimenta mais de 1 bilhão de reais por ano.

Que passos as grandes empresas precisam dar para se comunicar de forma assertiva com a população negra?

Primeiramente reconhecer que somos o seu maior público, independentemente de classe social, e que temos características culturais e biológicas próprias. Além disso, compreender que a herança africana tem influência direta ou indireta nas diversas esferas do consumo, o que deve ser considerado, portanto, mesmo para se comunicar com pessoas brancas, dependendo do contexto. Em seguida, ter em mente que o maior repertório das agências de publicidade que essas marcas contratam para serem seus agentes na criação de identidade, na construção de relação com o produto e divulgação da marca, são formados por pessoas que não vivenciaram ou vivenciam os códigos culturais de consumo da população afrodescendente. Elas precisam ter a humildade de reconhecer que, durante pelo menos um século, fizeram comunicação e produtos desconsiderando a existência da população negra, logo, hoje elas não têm o "know-how" necessário para lidar com esse novo-velho consumidor. Há necessidade de conhecer, de fato, o público com o qual querem se comunicar e não simplesmente supor o que esse consumidor deseja, entende? “Ah, mas está vendendo.” — Já escutei muito isso de diretores criativos e de executivos.


"O fato é que a população negra passou um bom tempo consumindo o que tinha e não o que queria. Agora, com a ascensão social, ela passa a ter repertório, criar critérios, se empoderar e desenvolver um consumo consciente. As marcas ainda não estão preparadas para isso. Elas estão correndo atrás de um prejuízo secular, que, portanto, não se repara da noite para o dia."


Foto: Maycom Mota

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